Da gaguez


Este programa foi um verdadeiro conjunto de disparates. Parece impossível como alguém com uma bata branca vai para a televisão dizer coisas como "as crianças começam a falar aos 18 meses" - não, é mesmo aos 12! -, que dizem primeiro "mamã e papá, por acaso!", que se deve obrigar as crianças gagas a decorar as frases ou os versos ou o que mais que o senhor se lembrou, que a culpa da gaguez nas crianças se deve, muitas vezes, a famílias disfuncionais e/ou ao medo que as crianças têm dos pais... POR FAVOR! Já não estamos no século XIX! Tem de haver responsabilidade por parte de quem vai transmitir este género de informação - enganosa e incorrecta - aos milhares de pessoas que vêem esta rubrica!

A gaguez é um transtorno da fluência/fluidez da fala que se manifesta de diferentes maneiras com uma grande variedade de sintomas e uma grande diversidade interpessoal, se bem que em todos os casos, os ouvintes, e o próprio sujeito, percebem como se as palavras se negassem a sair da boca com a suavidade, a velocidade e o ritmo suficientes/apropriados.
Existem determinados momentos, no desenvolvimento da criança, nos quais podem ocorrer alterações e perda de harmonia (disfluência normal) devido ao facto de esta não ser tão competente no desempenho da fala e da língua e na organização entre forma e conteúdo ou ainda porque lhe é exigido mais do que aquilo que pode entender e produzir. Pode existir, ainda, uma quebra no nível sintáctico das crianças, pois começam a surgir as frases complexas, o que faz com que as crianças tenham que gerir no espaço e no tempo, o dobro dos elementos. Quando se aprende um algo novo, nas primeiras vezes não se é tão eficaz e gasta-se mais energia do que é necessário. É o que acontece com o discurso da criança, em que elas vão arriscando nas suas produções e esperam pelo feedback do adulto, o que pode levar a ocorrência de disfluências normais.

A culpa da disfluência na criança não é de ninguém, este será um estado transitório, pelo que não é grave. Há que compreender que a criança terá, certamente, uma capacidade de compreensão maior do que de expressão e, como tal, não deverão existir sobreposições, interrupções ou competição com ruídos de fundo, quando a criança estiver a falar, pois isto poderá fazer com que tenha tendência a falar mais rápido e a atrapalhar-se, uma vez que não tem o tempo de que necessita para organizar a informação e seleccionar o vocabulário. Da mesma forma, dever-se-à ter o cuidado de não falar rápido nem fazer demasiadas perguntas à criança, por forma a esta não se sentir pressionada confusa nem pressionada a falar. Também é importante focar que não é adequado estar-se constantemente a corrigir a criança, caso contrário ela poderá tornar-se ainda mais hesitante e pensar que falar é uma actividade perigosa, pois nunca consegue dizer nada sem que a corrijam. É muito importante tranquilizar os pais acerca do facto de estes não terem qualquer tipo de culpa no que está a acontecer com a criança, pois só fazem o que tantos outros pais fariam, e que não está provado que a hereditariedade seja uma causa da gaguez, pelo que a sua responsabilidade no processo passa apenas por apoiar a criança e agir de acordo com as indicações que o Terapeuta da Fala deu, sem culpas e com calma, e tudo se resolverá.


(E não vale a pena andar por aí a decorar coisas e versos, porque no dia-a-dia não vamos recitar os Lusíadas quando formos à padaria ou ao supermercado!

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